A bordadeira que bordava histórias
 



Contos

A bordadeira que bordava histórias

Maria Beatriz Sampaio Silva




Depois daquele dia, Laila nunca mais foi a mesma. Tudo começou por causa de uma solteirona que se mudara havia pouco para o prédio defronte do seu. Bordadeira de mão cheia, mal o sol raiava, lá estava ela, na sacada, com seu bastidor, suas agulhas e linhas coloridas. Ali passava o resto do dia. Muito educada, falava baixo e sorria com parcimônia. Em seu aniversário de quarenta anos, Laila resolveu convidá-la para a festa.

A vizinha chegou meio acanhada, com um presente caprichosamente embalado em papel de seda e disse à aniversariante:

- Trouxe-lhe uma toalha bordada. Tirei o risco de sua história.

Laila não entendeu bem o que ela estava dizendo, mas não dava para abrir o embrulho na hora, tinha que receber os outros convidados. Agradeceu e colocou-o no baú dos presentes. Não viu mais a vizinha naquela noite. “Deve ter se sentido deslocada e foi embora”, pensou sem remorso.

Terminada a festa, sentou-se no chão junto ao baú para desembrulhar os presentes, mas, sob o efeito das taças de champanhe que havia tomado, sentiu uma zonzeira boa e resolveu deixar aquela tarefa para mais tarde, adormecendo ali mesmo.

Acordou com o sol batendo em seu rosto e, com os olhos entreabertos, viu que as persianas estavam recolhidas. Achou estranho. Tinha certeza de tê-las abaixado tão logo saíra o último convidado. Voltou-se para os presentes do baú e se lembrou do delicado embrulho da vizinha.

Remexeu, revirou tudo e não o encontrou. Bateu o olho em sua mesa de vidro e sentiu um calafrio na espinha: sobre ela havia uma toalha bordada.Laila nunca tinha forrado aquela mesa, achava bonito o vidro descoberto, deixando à vista os pés de ferro torneados.Seria aquela toalha o presente da vizinha? Mas quem a teria colocado ali?

Levantou-se com dificuldade e foi examiná-la de perto: nela estavam bordadas, em pontos de sombra, cenas do que lhe pareceu ser um casamento medieval. Lembrou-se das palavras da vizinha e teve uma vertigem, seus joelhos dobraram-se e ela teria caído se duas mãos fortes não a tivessem amparado.

Ao sentir a rígida e gélida textura do corpo que se encostava ao seu, assustou-se e se afastou. Estupefata, viu um cavaleiro que parecia saído das histórias da Idade Média:vestia uma armadura e o rosto estava encoberto por um gorro inteiriço, de tela, que deixava à mostra apenas um par de olhos violeta e as grossas sobrancelhas. No canto da mesa, um elmo medieval confirmava a estranha presença.

Laila teve nova vertigem e delicadamente o cavaleiro a carregou para o quarto e a acomodou na cama, recostando-a em confortáveis almofadas.Pegou na mesinha de cabeceira um bule de barro que exalava um aroma exótico e deitou seu conteúdo fumegante na xícara, aproximando-a dos lábios entreabertos da moça.Ela sorveu devagar aquele chá,que a aqueceu, e lançou ao cavaleiro um olhar comovido. Ele então fechou as pesadas cortinas, tirou o gorro, beijou-lhe a boca e saiu do quarto. Estranhamente, aquela cena pareceu a Laila totalmente familiar. Em poucos minutos, ela sentiu as pálpebras pesarem, e os longuíssimos cílios ruivos cerraram-separa o justo sono.

Quando despertou, muitas horas depois, se sentia com o vigor de seus vinte anos. Foi ao banheiro e lavou o rosto. Seus poros exalavam um cheiro extravagante, e ela imediatamente se lembrou do acontecido. Correu até a sala e não encontrou ninguém.Foi à janela e não viu a vizinha e seu indefectível bastidor. Entretanto, chamou-lhe a atenção o brilho de um objeto dependurado no prego da parede lateral da sacada; espantada, viu que era um elmo medieval.

Em meio a silogismos inúteis, pegou rispidamente a toalha, com a intenção de jogá-la no lixo. Mas, surpreendentemente, o bordado anterior havia sumido. Em seu lugar, estava bordada,em ponto cheio,uma cena de tango na penumbra de um cabaré.No minuto seguinte,a sala ficou a media luz e ouviram-se os primeiros acordes de famoso tango argentino.

 

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